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A ética do cuidado não é coisa só de mulher

Desde que a pandemia começou sua sangria nas estruturas econômicas de todo o mundo, em decorrência da severidade da crise sanitária da Covid-19, se suspeitava que alguns segmentos da sociedade seriam mais fortemente vitimados. E como numa associação direta entre crise econômica e essas personagens, a suspeita se fez realidade. E rápido.

As mulheres, especialmente nos países de economia média e de alta cultura patriarcal, ocupam majoritariamente as profissões de professoras e de cuidado de idosos, crianças e pessoas com necessidades especiais e também, nas áreas de saúde, além do comércio e aquelas ligadas às atividades domésticas.

Elas prestam serviços essenciais e neles estão tão mergulhadas quanto visibilizadas. Soma-se a isso o fato de que, na reclusão doméstica, sendo casadas ou não, a regra geral que se aplica para esse tempo é a manutenção da regra sempre comum, a sobrecarga.

Elas acordam cedo. Adiantam os afazeres domésticos. Acompanham os filhos nas atividades remotas da escola. E no meio de todas as responsabilidades normais do trabalho, ainda preparam as refeições, organizam o abastecimento da despensa, lavam e passam roupas, acodem as crianças em suas necessidades emocionais e, não sendo suficiente, precisam manter um ambiente de convento na casa, no mais absoluto silêncio, para garantir aos maridos a condição adequada ao desempenho de suas funções de trabalho.

As mulheres estão esgotadas. Física e emocionalmente. Muito mais severamente do que no período anterior à pandemia. E isso porque esse limite já parecia ter sido superado há muito tempo. E elas não têm sequer direito ao choro privado.

Além disso, pesa-lhes a pressão do medo do desemprego. Afinal, entre demitir um homem e uma mulher, “é natural” que se faça a segunda escolha, especialmente se for mãe. Também porque as mulheres são, massivamente, trabalhadoras das áreas mais afetadas pela crise econômica nos setores do comércio, alimentação e alojamento, serviços domésticos e dos cuidados pessoais (Pnadc). E há aquelas que se veem forçadas a se demitir, diante da impossibilidade de conciliar as responsabilidades domésticas dos tempos de pandemia, o cuidado dos filhos e o trabalho.

O quadro geral é muito preocupante, posto que não estamos falando de um segmento e força de trabalho que se possa desconsiderar. Isso se fôssemos apenas fazer uma análise fria. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, apontavam que mais da metade da população (52,4%) em idade de trabalhar era formada por mulheres. Evolução do ponto de vista da inserção no mercado de trabalho, já que permanecem as nuances profundamente problemáticas de serem as ocupações mais precarizadas e vulneráveis às crises.

A pandemia tem nos demandado muitas discussões acerca do tal novo normal que virá. Todavia, não colocar na centralidade do debate a condição da mulher na sociedade é condenar essa mesma sociedade a não sair do lugar e a permanecer sem perspectiva rumo ao avanço civilizatório que se faz tão urgente.

Assim, é muito importante considerarmos que as mudanças culturais empreendidas nas últimas décadas, ainda que em marcha lenta, não podem simplesmente retroceder em aspectos sociais e de direitos como se desenha. E nisso há grande responsabilidade das instituições da sociedade, como os partidos – que precisam pensar e debater propostas de viabilização da vida digna à mulher. Mas também do poder público – que precisa, urgentemente, priorizar os recortes orçamentários de políticas públicas para mulheres, na proteção à vida e saúde e mais, na valorização da sua capacidade produtiva e de desenvolvimento pleno.

De modo que, se o novo normal não promover uma cultura de co-responsabilidades, a partir de novos paradigmas sociais e de uma outra ética de cuidado, estejam eles no campo do doméstico ou da vida pública e do trabalho e, fundamentalmente, se os governos não conceberem programas e políticas públicas no sentido de resgatar e fazer avançar os processos da emancipação feminina   por meio do trabalho digno, permaneceremos reféns de sociedades injustas, violentas, degradadoras e que põem em marcha acelerada a nossa extinção como espécie neste planeta.

Ádila Lopes

porta-voz feminina

REDE Sustentabilidade, DF