Marina Silva
”Além da amazônia, arde em chamas o pantanal, uma das áreas mais irrigadas do continente sul-americano, com as labaredas devorando todo o material combustível que encontram pela frente, para desespero de gente e bicho”
Entre seus 193 países-membros, a ONU classifica 18 como megadiversos, o que quer dizer que são os que têm os ambientes naturais mais ricos do planeta. O Brasil está no topo da lista, seguido pela Colômbia. Temos sete biomas: amazônia, cerrado, pantanal, caatinga, mata atlântica, pampas e zona costeira. Cada um deles com características impressionantes de vegetação, topografia, sistema hídrico, variedade mineral e clima, além da notável variedade biológica, o que faz com que seja óbvia a nossa posição no ranking da ONU.
No entanto, a fortuna do país em natureza não corresponde a uma estratégia cuidadosa de convivência com ela, de boa parte de nossa economia. Não só iniciativas estatais e privadas para usar o ambiente natural mas também a prevenção de desastres ecológicos não têm estado à altura do necessário para conservar e preservar essa situação privilegiada entre os países do planeta.
Além da amazônia, arde em chamas o pantanal, uma das áreas mais irrigadas do continente sul-americano, com as labaredas devorando todo o material combustível que encontram pela frente, para desespero de gente e bicho. A imprensa tem registrado cenas dramáticas de animais incinerados, como bandos de macacos, jacarés, veados, cobras; outros desesperados de sede, acuados pelas chamas.
Para as araras-azuis, espécie ameaçada de extinção, começam a faltar as palmeiras nativas que são seu principal alimento. O pós-incêndio, para as que se salvaram, será de penúria alimentar. O fogo também destruiu décadas de estudos e pesquisas em reservas naturais e o investimento de muitos empresários rurais da região.
O pantanal, que o Brasil divide com o Paraguai e a Bolívia, embora seja o menor bioma brasileiro, com seus 250 mil quilômetros quadrados, é uma das maiores áreas alagadas contínuas em interior de um continente no planeta. A região tem como principal característica a topografia propícia ao acúmulo de águas superficiais de grande extensão, que emendam com leito de rios volumosos e uma grande quantidade de córregos afluentes e lagos.
Aí vive uma fauna variada, exuberante e distribuída em habitats hídricos, terrestres e aéreos. Além dos solos férteis pelo movimento regular de enchentes e vazantes, o pantanal oferece uma beleza cênica emocionante, a que ninguém fica indiferente, e por isso é um dos pontos turísticos mais visitados no Centro-Oeste.
O decreto presidencial no10.424, de 17 de julho, proibindo queimadas no país por quatro meses, tem sido letra morta. Conforme o Inpe, de janeiro a julho de 2019, tivemos 1.180 focos de incêndio no pantanal e, em 2020, passaram de 3.415; é de 189,4% o aumento, classificado como o pior cenário monitorado por aquele instituto nos últimos 22 anos. Os bombeiros de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul estimam que foi queimado 1,5 milhão de hectares somando as áreas incendiadas dos dois estados.
Quer porque há uma seca na região, quer porque o governo federal tem reduzido os recursos dos órgãos de gestão e controle ambiental, fragilizando e enfraquecendo o Ibama — encarregado da fiscalização ambiental no país — e fazendo o mesmo com o Inpe, centro de excelência de pesquisa e monitoramento ambiental; quer porque o presidente tem feito aberta sinalização de que os cuidados que uma política ambiental bem estruturada e inteligente promove são “estorvos” para o tipo de progresso que ele tem em mente, o fato é que as queimadas no pantanal conjugam condições climáticas com falhas humanas de várias naturezas. Nesse contexto, muitos produtores rurais fizeram neste ano o mesmo tradicional uso do fogo sem nenhuma restrição e podem com isso ter originado o incêndio que saiu do controle e causou essa tragédia ambiental.
Outro aspecto muito preocupante é o impacto da fuligem e da fumaça na saúde da população num raio de 200km dos locais que estão queimando, tanto em Mato Grosso quanto em Mato Grosso do Sul. A medicina ensina que o monóxido de carbono inalado se liga à hemoglobina do sangue e passa a prejudicar a oxigenação dos órgãos vitais, entre outros impactos igualmente perigosos da inalação de partículas que chegam com a fumaça e podem até ocasionar a morte.
À posição de topo do ranking dos países megadiversos, temos respondido com a produção de queimadas que, segundo os indicadores de Desenvolvimento Sustentável de 2010 do IBGE, compõem 75% das emissões de carbono do Brasil, o que nos leva a ocupar a posição de 10º país com maior número de emissões na época da pesquisa.
Estamos descumprindo os acordos climáticos de Paris e de Letícia, firmado com os países amazônicos, e contrariando os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Estamos jogando fora as nossas oportunidades e, pior do que isso, estamos avançando no estoque de oportunidades das gerações futuras. Nada mais contrário à sustentabilidade, que entrou na agenda da civilização humana com toda a força nos últimos tempos e nos coloca numa incômoda, estúpida e irresponsável contramão.