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Salles e a retórica como cortina de fumaça

Seu texto publicado em 24 de outubro é repleto de meias verdades, falsos argumentos e algumas inverdades

JOÃO PAULO R. CAPOBIANCO
Biólogo, doutor em Ciência pela USP, foi secretário nacional de Florestas e Biodiversidade e secretário-executivo do ministério do Meio Ambiente (2003 a 2008)

O atual ocupante do cargo de ministro do Meio Ambiente é um sofista profissional. Aqui não me refiro à etimologia da palavra que vem de sophós, que significa sábio ou habilidoso em grego, mas à definição dada por Houaiss: “aquele que utiliza a habilidade retórica no intuito de defender argumentos especiosos ou logicamente inconsistentes”.


Seu texto publicado por essa Folha, em 24 de outubro passado, é repleto de meias verdades, falsos argumentos e algumas inverdades. Pressionado por todos os lados para deixar o governo, seu objetivo foi esconder, sob alguns milhares de caracteres sem espaço, a única e cristalina verdade: ser o pior ministro de Meio Ambiente que o Brasil já teve, desde que o nosso saudoso Paulo Nogueira Neto se tornou secretário especial do Meio Ambiente, em plena ditadura militar.


Logo no início, o ministro parte de argumentos caros à sociedade para justificar completo desvio de função e falta de compreensão do papel do Ministério do Meio Ambiente.

Lixo acumulado sob as palafitas na comunidade de Vila da Barca, em Belém (PA) – Pedro Ladeira – 17.set.2019/Folhapress

Joga os dados da precariedade do atendimento em saneamento para argumentar que enfrentar esse problema seria a prioridade do MMA.
Não é. Não está entre as atribuições desse ministério e não há recursos nele para tratar dessa questão. Aliás é tão descabida essa argumentação e seu descompromisso com essa agenda é tão grande, que foi justamente sob sua gestão que a Agência Nacional de Águas foi transferida do Meio Ambiente para o Ministério do Desenvolvimento Regional.

Pior, se vangloria de ter desviado R$ 580 milhões do Fundo Clima para o BNDES aplicar em saneamento, como uma prova de que se preocupa com um dos principais problemas ambientais dos brasileiros. Esse argumento é tão falacioso quanto o ato é improcedente.

Falacioso porque o montante corresponde a ridículos 0,09% do que ele mesmo sugere como os investimentos necessários para o setor. Improcedente porque o saneamento não é fonte significativa de emissões de gases de efeito estufa, já que equivale a cerca de apenas 2,3% de tudo o
que o Brasil emite.

Ou seja, o ministro, que desconhece ou desconsidera os dados gerados pelo próprio governo, direciona a seu bel prazer, para fazer proselitismo político, parcela importante dos limitados recursos do Fundo Clima, que deveriam ser direcionados à mitigação das principais fontes de emissão nacionais, como o desmatamento, que disparou sob sua gestão.

Segue o ministro se auto elogiando pelos feitos em relação aos resíduos sólidos, mas na lista dos “programas do MMA”, publicada no site oficial do órgão, não há qualquer menção à existência deles. Não passam de iniciativas claramente midiáticas e desorganizadas, fora do planejamento e da estrutura do ministério.

Esse é o caso da transferência de recursos da indenização a ser paga pela Vale como reparação aos danos socioambientais causados pelo rompimento de barragens em Brumadinho, para a implantação de parques nacionais e investimentos em qualidade urbana, seja lá o que isso queira dizer. Ou seja, recursos para minimizar o impacto sobre as pessoas, que o ministro afirma ser a prioridade do governo Bolsonaro, são desviados para outros fins, sem nenhuma transparência.

E o combate ao Lixo no Mar? Essa é de enrubescer de vergonha até os mais aguerridos bolsonaristas que assistiram incrédulos, junto com toda a população brasileira, a incapacidade, incompetência e fraqueza do ministro em organizar a proteção de nosso litoral, frente ao maior vazamento de petróleo já ocorrido na costa brasileira. Caso gravíssimo de crime ambiental que segue sem a identificação e punição dos culpados.

Quanto às reservas ambientais, que agora ele diz “serem maravilhas da natureza largadas sem infraestrutura pelas gestões passadas”, suas iniciativas são, desde o primeiro dia frente ao MMA, no sentido da completa desconstrução do trabalho de décadas de montagem de um sistema nacional de unidades de conservação.

Sua postura contra essas áreas protegidas é pública e notória, chegando ao requinte de pretender fechar o Instituto Chico Mendes de Conservação na Biodiversidade, que tem exatamente o papel de implantar e bem gerir essas áreas naturais de valor inestimável.

Os incêndios no Pantanal, que deveriam ter sido prevenidos e combatidos logo no início e de forma intensa, pois já se sabia que a seca seria rigorosa, viraram motivo para uma série infindável de desencontros e impropérios. A queima controlada, que Salles chama de “fogo frio”, não estava proibida como afirma, já que há previsão legal para a sua prática. Quem proibiu seu uso foi o próprio presidente, seu chefe, por decreto de 16 de julho.

A afirmação de que teria sido a diminuição do número de bois, por pressão de ambientalistas “radicais”, a causa do desastre, com base no descabido argumento do “boi bombeiro”, já foi sobejamente desqualificada pela comprovação de que não houve diminuição do rebanho no bioma
nos últimos anos e pela investigação em curso, conduzida pela Polícia Federal, que indica haver indícios de que muitos incêndios foram provocados exatamente pelos interessados em ampliar as pastagens.

Quanto ao uso do retardante de fogo misturado à água, a posição dogmática e irracional foi do próprio ministro e não dos ambientalistas que ele acusa.
Passar por cima de parecer técnico contrário emitido por técnicos especializados do Ibama, despejar um produto não aprovado em áreas ambientalmente sensíveis e ter a vergonha de ser obrigado pela justiça a paralisar a compra de toneladas do produto em regime de urgência e sem
licitação, é que configuram dogmatismo e irracionalidade.

Isso sem falar do fato de ser crime, previsto no artigo 40 da Lei 9.605, provocar dano direto ou indireto em um parque nacional, como fez o ministro ao despejar esse produto não autorizado na Chapada dos Veadeiros.

Já perto do final, ao abordar a Amazônia, Salles se supera. Sob o argumento de ser necessário melhorar a qualidade de vida da população que lá vive, com o que todos concordam, passa ao largo do absoluto descontrole sobre o desmatamento crescente e a multiplicação de conflitos sociais na
região.

Publicado em Jornal A Folha de São Paulo