Onde haverá ruas seguras?

Os membros do portal Covid-19 Brasil, composto por 40 cientistas, médicos e estudantes da área de saúde, opinam que as nossas metrópoles deveriam estar cumprindo um rigoroso “lockdown” e não com seus gestores se dobrando ao cálculo e pressões políticas à custa da saúde da população. Domingos Alves, líder do Laboratório de Inteligência em Saúde da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP, disse ao jornal O Globo:

– “A palavra é dura, mas será um genocídio. Nenhum governo estadual teve coragem de falar em fila única de saúde, e esses pacientes, em sua maioria pobres, não terão assistência. Vão morrer em casa. É fácil botar a culpa na população, mas a responsabilidade de estabelecer regras e de dar segurança é dos governantes”.

Empresários como o CEO da Renner, Fabio Faccio, que administra um patrimônio de US$ 2 bi, declarou que o mais importante é cuidar da saúde das pessoas, a economia a gente conserta depois. Essa também é a opinião da empresária Luiza Trajano, proprietária do Magazine Luiza. O investidor Lawrence Pih entende que é preciso fazer isolamento social rigoroso, pois se não houver, como declarou ao jornal Folha de São Paulo, “condução adequada das medidas para conter o contágio” os danos econômicos serão maiores. Na sua primeira fala à janela do palácio do Vaticano, na Praça São Marco, depois da abertura da Itália, o Papa Francisco disse que “as pessoas são mais importantes do que a economia”.

A ciência, a sensatez e a responsabilidade nos comandam a ficar em casa, enquanto não há remédio ou vacina.

No Brasil, além da pandemia, temos agravantes.

O INPE informou, nesta quarta-feira, 03.06, que as queimadas este ano estão com mais focos de incêndio no Pantanal, na Mata Atlântica e nos Pampas, mas em extensão, a área queimada é maior na Amazônia. As queimadas têm grande impacto nas doenças respiratórias, particularmente em locais em que, pela topologia, tendem a acumular fumaça vinda de outros locais, como ocorre na bacia hidrográfica amazônica.

A Fiocruz alerta que, do ponto de vista climático, este é um período do ano em que, com a mudança de estação, os vírus que causam doenças respiratórias ficam ativos e impactam bastante a demanda por atendimento hospitalar.

Portanto, neste ano, esses dois fatos tradicionalmente recorrentes, encontram o país imerso nessa pandemia de dimensões gigantescas, tal qual gigantesca é a indiferença do governante atual em relação à tragédia que está alterando o planeta todo e engolfa nosso país, que já é o segundo em número de contágios, perdendo apenas para os EUA. Não por acaso, um país dirigido por um negacionista e, paradoxalmente, aficcionado a um medicamento que, também não por acaso, tem patente de propriedade de empresa em que ele é acionista, a farmacêutica Sanofi, conforme notícia no New York Times.

Neste contexto administrativo, ambiental e sanitário, uma crise política decorrente do autoritarismo e a inaptidão da gestão, sacodem nosso país, tensionam nossa indignação, nos convidam a agir, a “fazer alguma coisa”, a dar respostas para o insano comportamento dos manifestantes pró-Bolsonaro que nos provocam todo dia fazendo gestos hostis aos trabalhadores da imprensa na porta do Alvorada, levando bandeiras de movimentos neonazistas de outros países nas suas manifestações, exibindo armamento onde a segurança pública está disponível, carregando faixas que agridem instituições da nossa democracia e princípios constitucionais, tendo atitudes de idolatria com o imaginário, discurso e figura de Bolsonaro. Tudo isso também faz com que “não consigamos respirar”.

Mas devemos ir para as ruas e, como partido em que as pessoas confiam, convidar pessoas para ir para rua, sabendo de todo esse risco, inclusive com possibilidade de o contágio levar à morte?

Devemos chamar as pessoas para as ruas quando temos crítica aos governos que não têm como valor principal a segurança, a saúde e a vida dos cidadãos do nosso país?

Devemos chamar as pessoas para as ruas sabendo que estão movidas por emoção, indignação e quando voltarem para casa podem levar a morte em suas roupas, corpos e cabelos para seus familiares?

 A vida é inegociável. Não vale se imolar por acreditar nas mentiras de Bolsonaro. Igualmente não se pode ter a fantasia de que driblaremos o vírus porque somos democratas, nossa manifestação é do bem, é nobre nossa motivação: o vírus não discrimina posição política, ele quer células para se reproduzir, não importa a visão de mundo da pessoa. Não podemos nos sacrificar para privilegiar a economia, pois sem pessoas vivas não há produção, consumo, emprego, trabalho, comércio.

A economia, depois a gente conserta. A política, depois a gente conserta.

Nosso desafio é inventar ruas seguras, jeitos de pressionar, formas de gritar contra o autoritarismo, a injustiça, a trapaça de Bolsonaro, seus ministros, filhos, ideólogo, seus amigos de ficha não recomendável.

Nosso desfio é inovar, fazer do jeito que deve ser feito porque é justo, porque é novo e que protege as pessoas. Os meios digitais sempre nos encantaram como possibilidade de exercer a democracia direta, acesso a conteúdo de milhares, de milhões. Circulação livre de ideias pelas infovias.

Onde estão nossas ruas seguras neste momento? Que tipo de palanque podemos organizar, nas circunstâncias de recolhimento em que estamos, para que nossas ideias fluam, brilhem, convençam e levem a mudanças pela força de sua justiça? Como podemos ser milhões exigindo democracia, respeito a nossa Constituição, projeto de país que nos contemple?

Seria mais fácil fazer o de sempre: ir para as ruas, vestir camisetas, pintar o rosto, erguer o punho e gritar em uníssono palavras de ordem que nos representem, nos unam, nos tornem um. Mas neste tempo de pandemia não podemos fazer isso.

Não vamos chamar pessoas para a morte. Vamos chamar para a vida que não aceita a grosseria diária, a incompetência constante, a toxidade dos gestos e intenções desse presidente e sua equipe, que não soube e não saberá honrar a vitória que teve e que até aqui acatamos.

Vamos chamar as pessoas para a vida. A vida que quer ser vivida de jeito justo, com liberdade, em condições de dignidade para todos e respeito por todas as formas de vida.

Jane Vilas Bôas – antropóloga e Coordenadora de Comunicação da REDE

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